Poucas obras retratam tão bem o clima da década de 1960 como a música Hoje, de Taiguara, lançada em 1968.
Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo
Taiguara trazia no rosto, nas roupas e nas mãos as marcas daquele tempo. O desespero ficava por conta de Sartre, ganhador do Nobel de 1964, cuja fase mais célebre já dá o resumo da sua vida: O inferno são os outros. Não tão pessimista, Gustavo Corção lançaria, poucos anos depois, O Século do Nada, cujo sombrio título dá uma idéia do que ocorria naqueles tempos. Desesperado, Taiguara lamentava que a vida estivesse por um fio, que, de um momento para o outro, poderíamos estar todos mortos. Eram tempos da Guerra Fria e da contínua ameaça de uma guerra nuclear que poderia dar fim ao mundo. A “fossa” era uma gíria recorrente para tristeza. A fome era uma ameaça alardeada pelos neomalthusianistas. A flor é uma referência ao símbolo do movimento hippie e dos pacifistas – “Faça amor não faça guerra”.
Hoje
Trago no olhar imagens distorcidas
Cores, viagens, mãos desconhecidas
Trazem a lua, a rua às minhas mãos
Imagens distorcidas, cores, viagens – Era, também, o tempo da disseminação das drogas. Tempo do movimento psicodélico, do LSD, da heroína. O beautiful people lançava essa moda demoníaca. Chapar era in, não fumar era out.
Mãos desconhecidas – Taiguara já naquela época cismava com a chegada da televisão.
Trazem a lua às minhas mãos – A conquista da lua era a meta do projeto Apollo, iniciado em 1961 e cujo ápice foi o pouso lunar em 1969.
Mas hoje
As minhas mãos enfraquecidas e vazias
Procuram nuas pelas ruas, pelas luas
Na solidão das noites frias por você
A fraqueza das mãos é a fraqueza da alma de uma época sem Deus. Enfraquecidas pelo distanciamento de Deus e vazias de obras. Mãos que procuram, na solidão das noites frias, por Deus. A solidão foi a doença do século XX e continua sendo a doença do nosso tempo.
Hoje
Homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo, acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte
A futurologia foi outra marca dos anos 1960. A série de desenho animado Os Jetsons estreiou em 1962. O seriado Perdidos no Espaço, em 1965. O Túnel do Tempo, em 1966. Isaac Asimov fazia muito sucesso. O computador – cérebro eletrônico – dava o tom das discussões. Os homens sem medo que aportavam no futuro mas a incerteza desse futuro sem Deus metia medo em Taiguara.
Hoje
Homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte
Para os homens de aço – homens que não têm carne, nem sangue, nem alma, nem sentimentos – a ciência é o sucedâneo da fé em Deus. A década de 1960 foi marcada pela ciência – pela pílula, pela cesariana – as mulheres já não mais paririam sem dor, pela chegada da indústria automobilística, pelas conquistas tecnológicas provenientes da Guerra Fria, pela televisão. Com homens sem fé dominando a sociedade, Taiguara desesperava e abraçava a ausência de Deus, que é o que lhe restava na sua sorte.
Sorte…
– “Você também não está bom de saúde, Riobaldo, estou vendo. Vocẽ derradeiramente não tempassado bem?”
– “Vivendo minha sorte, com lutas e guerras!”
Ah, sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim como eu te amei
O jovem Taiguara não queria estar desperdiçando a juventude. Quereria ter amado a Deus mais e melhor.
A música Hoje, de Taiguara, vai se despedindo do seu jubileu de ouro como nós vamos nos despedindo de 2018, e continua atual – uma oração de desespero de uma sociedade que voltou as costas a Deus.
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Excelente reflexão sobre um tempo que ainda não passou. As drogas foram disseminadas atingindo e marcando os inocentes nas escolas, as guerras assumiram proporções e formas aterrorizantes… Mas a fé, a esperança, a compaixão pelo semelhante segue latente nos corações. Um renascimento, uma alvorada, um Natal para a humanidade ainda são presentes que Deus oferece, disponibiliza para os que vivem este “moderno” Calvário.
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