Tradução do prólogo do livro Demencia Digital – El peligro de las nuevas tecnologías (Ediciones BSA, 2013), tradução espanhola do livro Digitale demenz, do neurocientista alemão Manfred Spitzer.
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“Senhor Spitzer, o senhor está lutando contra moinhos de vento, ou melhor, contra parques eólicos inteiros. Continue assim, por favor!”
Hoje se escreve mais e-mails do que cartas convencionais. E assim vou recebendo muitos e-mails, uns agradáveis outros menos.
“Senhor Spitzer, estou no videogame disparando o meu Kalashnikov virtual. Se eu tivesse um de verdade, você seria o primeiro a quem eu abateria a tiros. PS: O que você diz sobre a relação entre violência virtual e violência real é um verdadeiro disparate.”
Diversos prefeitos se dirigem a mim quando ministro uma conferência em suas cidades:
“Boa tarde, senhor Spitzer, meu filho o odeia, e gostaria muito de tê-lo trazido aqui.” Às vezes, a verdade também incomoda os jovens de 15 anos!
Incluindo a seguinte: “Aproximadamente 250 mil jovens entre 14 e 24 anos são considerados ciberdependentes; 1,4 milhão são usuários de internet problemáticos.” São dados do relatório anual da Mechthild Dyckmans, a comissão de vícios patológicos do governo alemão, publicado em 22 de maio de 2012. O consumo de álcool, nicotina, assim como de drogas leves e pesadas retrocedeu, enquanto o vício em jogos de computador e internet aumentou de forma dramática. O governo não sabe o que fazer. A única medida tomada até o momento foi aumentar o valor das multas para os donos dos locais de jogos que permitam o acesso de menores de idade às máquinas.
Menos de quatro semanas antes da publicação desse relatório, o ministro federal da educação, Bernd Neumann, elogiara um jogo de assassinato cujos produtores haviam recebido 50 mil euros de prêmio saídos dos cofres públicos. Ao mesmo tempo, se constatava a triplicação número de viciados em jogos em um período de apenas 5 anos afetando principalmente homens jovens desempregados. Eu mesmo tenho tratado de pacientes viciados em jogos de computador e internet na clínica psiquiátrica universitária de Ulm que dirijo. As vidas desses pacientes foi totalmente destruída pelas mídias digitais. Há cinco anos, médicos da Coréia do Sul, país industrializado supermoderno com uma TI vanguardista em todo o mundo, perceberam em jovens adultos, com frequência crescente, transtornos de memória, atenção e concentração bem como superficialidade emocional e embotamento generalizado. Deram o nome de “demência digital” a esse quadro clínico.
Ao apresentar esses processos alarmentes de forma resumida neste livro, remontarei a pensamentos que já expus e publiquei faz tempo, pois há mais de 20 anos estudo as transformações do cérebro devidas à aprendizagem e suas implicações em nossas creches, escolas e universidades. Como se pode comprovar pela atualidade da bibliografia aqui utilizada, procurei integrar ao debate, de forma prioritária, os conhecimentos modernos mais recentes.
Em diversas ocasiões me reprovaram dizendo que eu não tinha a menor idéia do assunto sobre o qual escrevo pois apenas um jogador apaixonado pelos jogos violentos está em condições de julgar a própria fascinação e os efeitos em sua mente. Isso é incorreto, do ponto de vista da minha experiência como psiquiatra. Um alcoólatra pode avaliar muitíssimo pior os efeitos do álcool em seu corpo do que o psiquiatra que o trata, e não ocorre de maneira diferente em outras doenças por adicção e nos sofrimentos anímicos. Um distanciamento e uma visão externa são, em não raras ocasiões, os melhores requisitos para julgar um estado de coisas, ainda que de maneira medianamente objetiva. Por que haveria de ser diferente em relação às mídias digitais?
Esforcei-me em satisfazer as exigências científicas de exatidão e documentação das fontes sem prejuízo da legibilidade do texto. Por isso, renunciei a exibir os dados de significância (valores P) mas posso garantir que neste texto só me ocupei de diferenças significativas do ponto de vista estatístico. Segue anexa a bibliografia original para quem queira comprová-lo em cada caso particular. Traduzi todas as citações em inglês; por isso inclui centenas de indicações “tradução do autor”.
Este livro é dedicado aos meus filhos. Tenho como meta prioritária deixar-lhes um mundo valioso, digno de ser conservado e de ser vivido de tal modo que, apesar do aquecimento da Terra, da crise econômica mundial e dos grandes desafios conhecidos no presente, eles tomem a decisão de terem eles mesmos os seus próprios filhos. Para mim, é uma necessidade trabalhar ativamente para este mundo: para a comunidade, para o futuro, para a liberdade, para as pessoas e para os seus problemas reais, para fomentar a atuação autônoma de pessoas instruídas e com espírito crítico, e interceder a favor daqueles que ainda não podem fazê-lo (nossos filhos) ou que já não estão mais em condições de fazê-lo (enfermos e anciãos). Esses são os valores que recebi dos meus pais quando eu era criança, que assimilei como uma vacina e que levarei comigo durante toda a vida.
Ulm, Pentecostes de 2012
MANFRED SPITZER
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