Eu assino embaixo, doutor, por minha rapaziada
Somos crioulos do morro, mas ninguém roubou nada
Isso é preconceito de cor
Bezerra da Silva (Preconceito de Cor)
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Os sambas imortalizados pela voz de Bezerra da Silva – A Semente e Pai Véio 171, por exemplo – refletem os temas mais comuns do nosso dia a dia: drogas, violência e enganação. Em Preconceito de Cor, o grande sambista cantou o prevenção contra os crioulos do morro.
A música é muito boa mas, infelizmente, o cantor se equivocou – o preconceito existe, mas não é de cor e sim social.
Observe que, num primeiro momento, ele diz “somos crioulos do morro mas ninguém roubou nada, isso é preconceito de cor” e logo em seguida “a lei só é implacável para nós favelados“ (grifo meu). Ou seja, a perseguição aos crioulos ocorre porque são pobres e não porque são crioulos. Aliás, a própria expressão “crioulos do morro” já admite isso; se há crioulos do morro, também há crioulos que não são do morro, ou seja, da cidade ou do asfalto, como se costuma dizer. O preconceito é contra os do morro; contra os da cidade não há preconceito. Preconceito social, portanto.
Pelé, sem perceber, também incide no mesmo equívoco. Diz o Rei em sua Autobiografia:
É claro que existe racismo no Brasil, mas tive a sorte de ficar famoso e rico ainda jovem, e as pessoas tratam você de maneira diferente quando você tem dinheiro e é uma celebridade.
Mais uma vez, preconceito social e não de cor.
Brasileiro nunca teve preconceito de cor (pelo menos, não mais do que o tolerável em qualquer sociedade). O maior ídolo brasileiro é Pelé e a brasileira mais aclamada é Nossa Senhora Aparecida. Gilberto Freyre cansou de demonstrar o nosso não-racismo (o filho ilegítimo do senhor branco com a escrava era criado junto com os filhos legítimos; a povoação do Brasil ocorreu com base na religião e não na raça; todo brasileiro tem uma pinta de negro na alma etc.). Ali Kamel – por incrível que pareça – dedicou um livro inteiro ao tema; Não Somos Racistas nasceu na época em que tomava corpo o movimento pelas cotas raciais, essa esquisitice idiotizante que se baseia no privilégio de um grupo étnico em detrimento dos demais – a própria definição de racismo.
A verdade é que brasileiro não é racista; ele simplesmente não gosta de pobre.
Dito assim, até parece que estou tentando amenizar. Nada mais errado.
O preconceito social é bem pior do que o preconceito de cor porque se baseia numa coisa – o dinheiro – bem mais baixa do que a raça. A raça é algo imutável e, por isso, o racista pelo menos tem firmeza de opinião. Já a situação social muda ao sabor do destino; um pobre pode enriquecer e um rico pode empobrecer. O brasileiro, então, parece um biruta volúvel procurando analisar se alguém merece ou não a sua consideração. Ao eleger o dinheiro como valor absoluto, o brasileiro transforma o país numa terra de ninguém onde vale tudo e não é de admirar que o nosso país tenha se transformado no reino da mentira e no paraíso dos ladrões.
Até um tempo atrás – mais ou menos até os anos 1960 (a década da revolução sexual, da pílula, do Concílio Vaticano II, da teologia da libertação, do pacifismo, do início do terrorismo, tudo potencializado pela chegada da tv às massas) – o Brasil tinha mais decência porque era mais pobre. Houve outros fatores – até mais importantes – para a nossa decadência moral mas o enriquecimento do país foi um dos motivos que fez do brasileiro o povo mais dinheirista do mundo.
Se quisermos sair do buraco em que estamos, de nada adianta falar em recuperação econômica ou reforma disso e daquilo (vem aí a reforma tributária; quer apostar que a carga tributária vai subir?). Temos que ir à raiz do problema para desfazer o nó górdio em que se transformou a sociedade brasileira – um povo violento, inutilizado pelas drogas e idiotizado pelo comunismo. Só percorrendo o caminho inverso ao que nos levou ao culto ao dinheiro (no fundo, culto à aparência) pode trazer de volta a confiança que um brasileiro devia sentir no outro.
Quem sabe um dia poderemos – brasileiros de alma crioula que somos – voltar a cantar com orgulho junto com o grande Bezerra:
Eu assino embaixo, doutor, por minha rapaziada!
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